OS
CORVOS
Uma
risada ecoa pelos becos semi-adormecidos da cidade; uma risada de dez
timbres e com dez ecos. Crentes e incrédulos, crédulos e ateus,
dormem e sonham, ou perseguem o sono com paixão, fazendo ou deixando
de fazer, amando ou não, em sonho ou realidade, com ou sem paixão,
todos ouvem dez ecos e uma verdade, e ela vem, sem compaixão ou
piedade.
Eles
surgem ao longe, caminhando no mesmo passo. Vestem-se de preto e
brancos eles são. Parecem feitos de névoa e de névoa eles são.
Foi
o canto de dez timbres que me arrancou do meu sono de morte, com seus
dedos sedosos afagando-me as faces macilentas,
sem perguntar o que eu desejava, sem pedir permissão.
Rasguei
a terra, úmida das lágrimas da chuva, meti meu corpo para fora como
uma criança que nasce e a lama tornou-se parte de mim.
Fazia
frio, mas eu não o sentia e ao mesmo tempo era como se meu corpo
fosse feito de gelo, e de gelo fosse a minha alma.
Veio
a primeira mulher a mim, e das cinco era a mais jovem. Tinha grandes
olhos e um sorriso de demônio.
Usavam
eles cruzes pintadas sobre os olhos e prolongados os lábios por
riscos nos cantos. A cada um, particular característica cabia; e a
mulher mais jovem me fitou de forma direta, fazendo-se ouvir com sua
voz vibrante:
-
Comigo terás a perfeição de existir, sem erros ou arrependimentos,
sem exitações ou temores.
E, falando
isso, um beijo depositou em meus lábios. Seu nome era Vita, e vida
ela me concedeu.
“Em
certo dia, à hora, à hora
Da
meia-noite que apavora...”
“Era
uma vez...” começaria sua história assim, como se fosse a
princesa de contos de fadas, destinada a um final feliz.
Era
uma vez uma jovem de dezesseis anos que desejava alcançar a
perfeição em todos os sentidos. Seria então uma criatura perfeita,
tanto nos traços quanto nos hábitos; diante de Deus e dos homens, e
viveria o mais perfeito de todos os amores...mas, era uma vez uma
jovem sonhadora de dezesseis anos, que não teve uma vida perfeita e
nem longa.
Era
uma vez uma jovem...
Era
uma vez...
Já
não era jovem...já não era viva.
Era
uma vez um jovem que dizia amá-la. Não pode comprovar este amor.
Para a guerra ele foi e na guerra pereceu. O amor foi com ele...o
dele e o dela, ele e ela, pois foi como se a vida acabasse e não
pouco a pouco; foi de uma só vez e vazia ela ficou.
A
princesa chorou...não, tentou! Tentou e tentou, mas não pode. Seca
de amor, de vida e de lágrimas. Estava morta, apenas não
percebera...não, apenas não se deixara morrer.
Era
uma vez a princesinha morta que caminhava no meio dos homens, seca de
dor e amor e que no passado vivia...não, ela não vivia, apenas
pensava viver.
Certo
dia percebeu finalmente o que lhe acontecera e foi essa percepção
que devolveu-lhe a vida, mesmo que por pouco tempo.
Devolveu-lhe a vida, não
a razão.
Louca de
dor, a dor que por tanto tempo ignorara, tomada de indignação e
raiva, consciente de que perdera a sua vida antes mesmo de a ter,
abriu as veias com uma lâmina e sentada ficou, apreciando sua
própria morte e a da alvorada.
Era
uma vez uma história de amor que não chegou a acontecer.
De
trás da mais jovem das mulheres, o primeiro dos homens surgiu, e
belo ele não era, mas hipnótico sim, e sua voz era como um trovão,
que a terra fazia tremer.
-Em
mim verás a melancolia de existir, sem grandes felicidades ou
alegrias, sem exaltações ou riscos.
E com o polegar desenhou em
minha testa uma cruz. Queimou-me a pele onde tocou, mas a marca, na
alma ficou; não uma cruz, e sim o nome: Salazar... o seu nome... e
lá ele ficou.
“Repouso
(em vão) à dor esmagadora
destas
saudades imortais.”
Não
poderia dizer, ou mesmo afirmar, que o que fizera havia sido motivado
pela perda do amor ou mesmo solidão. Fizera sim, mas o maior motivo
que o levara ao seu fim fora a culpa e o medo. Que ele a amava, não
havia dúvida, mas também a fizera sofrer, apesar de todo o amor que
sentia.
Mesmo
agora, depois de tantos anos ( por mais que tentasse não conseguia
recordar o tempo exato) podia ver o rosto dela a sua frente...podia
vê-la boiando no rio...podia ver-lhe as palmas voltadas para cima
com a água tentando acordá-la. Foram as mãos brancas e murchas que
ficaram realmente gravadas em sua memória: aquelas mãos que tantas
vezes beijara. Depois de morta ela não o abandonara...ele não
permitiria! Jamais poderia permitir!
Ia
todas as noites até o rio, e sempre para passar pela mesma dor:
vê-la boiando na água com os olhos vítreos fitando o vazio. Ver os
cabelos vermelhos retorcendo-se em volta do rosto inerte. Então,
vendo-a, colocava-se a rezar por ela e por si mesmo. Rezava por quase
toda a noite...era a única coisa que em vida soubera fazer, e
exatamente o que o condenara.
Culpava-se
sim! Culpava-se por não tê-la defendido. Culpava-se por ter sido
covarde. Culpava-se por ter lhe voltado as costas quando a vida dela
dependera de apenas um olhar seu.
Deitara
com ela, beijara ela, cobiçara ela e fugira dela.
Queria então
tornar a deitar com ela, beijar ela, e ir ao encontro dela.
Os
braços alvos pediam por seu toque, os lábios pálidos queriam seus
beijos.
A
água fria possuía aquele corpo, mas não a possuiria sozinha.
Fora
a culpa, medo...mas também amor. De tudo, no entanto, só restara a
dor e esta, a água ele ofertou...adeus a dor...adeus amor.
Veio
a Segunda mulher e loiros eram seus cabelos. Sorriu-me com carinho e
as faces me acariciou. Falou sussurrando em meu ouvido e meu coração
tocou.
-Por
mim serás e por mim sentirás. Amor posso tomar, embora não dar e a
alma hei de te roubar.
E seus
lábios a ponta de meu nariz tocou. Chamava-se Tiana... me fazia
chamá-la...Tiana... te amo...Tiana...me ama...
“Dentro,
em meu coração, um rumor não sabido,
nunca
por ele padecido.”
Olhos
do mais profundo tom de verde, ostentando o brilho dourado salpicado
em torno dos poços negros daquela alma e a vida a esvair-se num
singelo e doloroso suspiro, que dos lábios escapava.
Olhos
postos em olhos; um só dor, o outro amor. Um certeza, o outro
surpresa.
Corpos
colados num abraço de morte...morte em um, morte do outro...morte de
um causada pelo outro.
Sangue
quente em mãos frias e o choro de uma criança no corpo de um homem.
Agarrado
ao corpo enxagüe, pouco
a pouco caindo no chão, joelhos postos e a cabeça dela sobre o
coração. Queria dizer-lhe que fora um acidente...queria dizer-lhe
que a amava, mas sabia que de repente a morte se aproximava. E ela,
entre surpresa e amedrontada, os dedos enterrados na carne dele,
apenas esperava e chorava. Se uma alma possuía, a certeza já tinha,
que por seus lábios ela vinha, deles escapava e vazia ela ficava.
“Não
saia de mim”, pedia com suas lágrimas, mas a alma seus pedidos
ignorava.
Sentiu
nas faces as lágrimas dele, mas já não podia mais vê-lo.
Podia
ouvi-lo, mas não entendê-lo.
Podia
senti-lo, mas jamais voltaria a tê-lo.
E
o próximo homem distante era. Belo, mas frio. Morto, mas quente e
suas mãos se puseram diante de meu rosto como se o modelasse sem
tocá-lo, e sua voz era aveludada, mas morta:
-De mim
terás medo ou coragem. Por mim sentirás amor e voragem.
Devora-te-ei o passado, presente e futuro.
Ele não
precisou dizer-me seu nome, pois eu o vi em seus olhos: Zane!
“A
porta escancaro, e acho a noite somente,
Somente
a noite, e nada mais.”
Mulher
enganadora, que o iludira com mentiras cruéis, acompanhadas por
falsos olhares amorosos. A face de anjo que ocultava o verdadeiro
demônio que habitava aquela alma torpe. Lábios rubros que
destilavam veneno, mãos que afagavam e unhas que dilaceravam. Assim
como a amara passara a odiar e não mais se satisfaria em
saborear-lhe a saliva; desejava-lhe o sangue, quente e vindo da fonte
e que ela implorasse por perdão ao morrer, ou que não morresse e
recebesse, no lugar da morte, o sofrimento eterno.
Depositara
aos pés dela tudo o que fora, para só então descobrir que amor não
teria e só desprezo sentiria.
Homem
tolo que se iludira com mentiras cruéis. Se deixara levar pelo rosto
belo e amoral, e por promessas falsas, vindas de lábios fatais.
Já
não pagara por seus erros em vida? Fora enganado e levado a cometer
um ato impensado.
Derramara
sangue sobre a arena e tivera para si o último olhar dela antes da
morte. Sustentara seu corpo por um longo tempo, ouvindo os gritos das
pessoas, e o sangue banhara a terra e suas mãos. Jamais teria as
mãos limpas novamente e muito menos o coração.
Perdera
a vida por tomar a vida dela. Arrastado pelo povo, lançara um último
olhar para o corpo caído no chão da arena, os olhos vítreos
pareciam acusá-lo e os lábios zombavam dele como sempre fizera em
vida.
Esses
olhos sempre o perseguiram desde então. Sempre e sempre unidos pelo
ódio e por algo mais que ele não conseguia compreender.
Fora
condenado ao castigo eterno da lembrança. Sempre e sempre aquele
olhar; sempre e sempre vivo mas morto.
Sobrepôs-se
ao seu rosto o daquela emoldurado por mechas violetas e seu sorriso
era nostálgico, como se do passado viesse e para lá devesse
retornar.
-Em
mim viverás e por mim desistirás daquilo que a ti eu ordenar, seja
tua vida ou decisão de morte. Seja tua morte ou desejo pela vida.
E seus
lábios macios minhas faces tocaram, ao mesmo tempo que o nome
murmurava: Ília!
“Com
longo olhar escruto a sombra,
Que
me amedronta, que me assombra,
E
sonho o que nenhum mortal há já sonhado...”
Corria,
e o coração em seu peito parecia bater no mesmo ritmo de seus
passos. A cada vez que seus pés tocavam o chão, um frenesi, um
arfar.
Por
todo o caminho recordava-lhe as palavras e um sorriso em seus lábios
se delineava.
-Sou
culpado, bem o sei, mas como não o seria se, postos os meus olhos no
teu semblante, perdi-me de amores no mesmo instante? Não! Culpado eu
seria por não te amares e por não perguntar a Deus se é possível
existir tão grande beleza que não no rosto de um anjo. Mil vezes
culpado e mil vezes inocente.
E
então a apertara entre os braços, esmagando-lhe os lábios num
beijo de posse que a confundira e até mesmo chocara. Tamanha ânsia
somente em um beijo não seria então um pecado mortal? Mesmo assim
ia ao encontro dele, ardendo de temores e paixão. Queria sentir
novamente no seu corpo o desesperado amor que ele lhe votava e ao
mesmo tempo ser escrava e senhora.
Queria
que ele a impregnasse do seu ser de tal maneira que fosse
praticamente impossível ver-se livre do amor que sentia e que lhe
era votado.
Corria
no meio da madrugada pelos longos e desertos corredores e ia ao
encontro dele. Não lhe contara...queria surpreendê-lo, queria
vê-lo, estar com ele uma vez mais antes que partissem.
Entregaria
tudo o que conhecera até então como vida para estar com ele e mesmo
com pesar, a vida da irmã destruiria. Sentia medo mas não recuava.
Mil vezes culpada e mil vezes perdoada.
No
quarto as escuras entrou e os dedos pelas paredes deslizou.
Sentia-lhe
o cheiro...respiravam o mesmo ar.
De
costas, sorriu no momento em que ele tocou-lhe os ombros e beijou-lhe
a nuca, murmurando “Bem vinda, meu amor.”
Começando
a voltar-se para ele, desejosa de seus lábios, um gemido
escapou-lhe, doloroso, ao sentir nas costas a lâmina fria
rasgando-lhe a carne e ouvir um nome que não era o seu. “Bem
vinda, meu amor e assim sendo, adeus.”
Surgiram
abruptamente dois dos homens e entre eles outra das mulheres.
A
luz existente pareceu concentrar-se toda nos três rostos, dois dos
quais sorridentes.
Deram-se as
mãos comigo no centro do círculo e, uma por vez suas vozes me
envolveram:
-Sou teu
passado...
-Sou
teu presente...
-Sou
teu futuro...
E enquanto
falavam pareciam brincar de roda, me confundindo numa sucessão de
rostos brancos.
-De mim
sentirás saudade.
Falou-me o
homem de olhos maldosos e sorriso ácido.
-A mim
prezarás.
Murmurou a
mulher com sarcasmo.
-Por mim
sentirás pavor.
E aquele de
olhar perdido, minhas mãos beijou.
-Teu
passado se chama Meüjael.
-Teu
presente se chama Marja.
-Teu futuro
Mansur.
Então
o passado, presente e futuro eu vi!
“Um
minuto, um instante. Tinha o aspecto de um
Lord
ou de uma Lady. E pronto, e recto,
Movendo
no ar as suas negras asas,
Acima
voa dos portais.”
O
fogo, erguendo-se acima dos corpos tomava proporções homéricas e
parecia-lhe que estava a lhe sorrir, com sua enorme boca repleta de
vítimas.
Sufocando
com o cheiro e o desespero, corria para um lado e para outro e
acabava apenas esbarrando naqueles que ao medo já se rendiam.
Procurava
quase em agonia, mas nada...ninguém encontrava.
Quando
seus olhos perceberam a verdade que não queria, perdendo parte das
forças que ainda o animavam, de joelhos caía sobre o chão
ensanguentado.
“Mais um ou dois passo”, pensava, engasgado com o próprio
pranto, sufocando com o grito que recusara.
“Mais
um ou dois passos e eu conseguiria,” justificava, mas nem a si
mesmo enganava.
Caído
de bruços no chão, enterrando os dedos feridos na terra,
arrastava-se pouco a pouco na direção dos dois corpos que,
abraçados e sem vida, já não mais o esperavam.
“Mais
um ou dois passos” pensava...e nada. Mãe e filha pareciam tão
distantes então...tão fora do alcance quanto a sua própria vida
estava.
“Deus!”
Clamou.
“Deus!”...e
de bruços ele ficou.
Nem
mais um passo, nem mais dois passos...nem mais um pouco...jamais ele
conseguiria.
“Como
te chamas tu na grande noite umbrosa?”
Deitada
em sei leito com o corpo colado ao do amante, sentia contra seu peito
o coração dele batendo em apaixonado desespero. Amava-o, sim...não!
Amava-o, talvez...quando estavam juntos desejava estar com ele pelo
resto da vida, mas quando se afastavam durante o dia, dúvidas
surgiam e ela procurava, com ânsia mortal, os lábios deles e os
seus braços a luz da lua.
Amava-o,
talvez...não, talvez não! Queria ser livre, mas ele a mantinha em
cativeiro. Procurava roubar a sua alma e controlar seu corpo.
Odiava-o,
sim...não, odiava-o, talvez...quando estavam afastados desejava
jamais tornar a vê-lo, mas quando se encontravam durante a noite, a
certeza surgia, e ela procurava, com ânsia mortal escapar aos lábios
dele e os seus braços durante o dia.
Odiava-o
talvez...não, talvez não! Queria ser livre, mas ele não permitia.
Procurava torná-la escrava e acabar com a sua vontade.
Deitada
em seu leito com as mãos do amante em sua garganta, exalou o último
suspiro dentro da boca dele, sentindo-lhe o coração bater em
apaixonado desespero.
Não
precisaria mais preocupar-se em ser livre ou não, pois ele decidira
em seu lugar.
Escrava,
submissa...não! Não submissa. Escrava, sim,
mas livre daquele amor...
“Jamais
homem há visto
Coisa
na Terra semelhante a isto.”
O
último nome que pronunciou foi o dela, imerso em dor e sangue.
Sentia-se feliz, no entanto. Feliz pela felicidade de ambos.
Jamais
vira, em todos os tempos, faces tão radiantes e, em momento algum,
até aquele, percebera o verdadeiro sentido da palavra amor.
Morria
feliz relembrando dos corpos juntos sobre o cavalo acenando-lhe,
sorrisos estampados nos rostos, esperança nos olhos.
Amava-a
tanto que só a ideia de sua doce existência trazia-lhe lágrimas
aos olhos e uma dor profunda no peito.
Amava-o
também, a toda a vida que ele irradiava.
Juntos
eles eram a própria vida.
Pouco
a pouco ia relembrando palavra por palavra, olhar por olhar, momento
por momento e, apesar da dor, ele mesmo sorria.
Fechando
os olhos, transformava a tontura em uma vertiginosa experiência,
para então ser desperto de seus delírios pela água fria. Novamente
sal nas feridas, novamente dor...os dois pareciam afastar-se, mas ele
os trazia de volta e a dor quase desaparecia.
Sentiria
saudades das noites de estrelas ouvindo as canções dele; sentiria
falta de ficar admirando o rosto dela em adoração, enlevada pela
música.
Haviam sido um só ser então.
Não
julgara que poderia ser feliz sem eles e por isso se entregava a
morte, mas então “ele” surgiu. Era negro e brilhante. Uma figura
fantástica descendo do
céu, planando com suas asas abertas, sobre seu ombro indo postar-se.
Num piscar de olhos tudo se acabara...tudo começara.
A
última
das mulheres veio e segurando-me a cabeça com as mãos, a mim
segredou:
-Serei tua
dor, teu pranto e sofrimento. Serei teu amor, alento e pensamento.
E a testa
ela me beijou. A esta, o nome perguntei e a resposta ela me soprou:
Sian!
“Parece,
ao ver-lhe o duro cenho,
Um
demônio sonhando.”
Sob
a superfície imaculadamente lisa da piscina natural, as águas
mudaram de cor anunciando algo a alterar-se no seu cerne; um ondular
de cores e borrões, procurando unir-se para revelar o rosto do
passado. A face de radiante e melancólica beleza, que da água
surgiu pouco a pouco, revelando ao mundo os lábios ainda rubros de
amor e os olhos azuis de paixão, saudou a sua com a pureza de um
sorriso. Mergulhando as próprias mãos na água pulsante, seus dedos
tocaram os dele e borbulhas os envolveram como se o corpo liquido
seus toques sentisse.
-pode
o meu amor ser tão grande, que me apunhale o peito e dele arranque o
doce sangue e minha vida? Se assim for, que o doce se transforme em
sal ou que vazias minhas veias se tornem, sem que jamais eu saiba o
que teria sido viver na eternidade sem tua face conhecer.
E
o corpo esguio, envolto pela clara pele do entardecer no inverno,
acolheu o dela; e seus braços jovens e nus fecharam-se em torno do
corpo jovem e nu que viera recebê-la. Não, não eram braços
aprisionando-a e sim asas e pernas entrelaçadas a pernas, bocas
procurando bocas, olhos mergulhando em olhos...acima de tudo, no
entanto, a voz dele, mais doce que o seu sangue.
-Fiquemos
juntos então, e que o punhal do amor atravesse meu corpo sem que eu
o repudie, nem mesmo por um segundo.
-Pode
o amor ser tão cruel que jamais nos permita a paz em nossas almas
quando encontramos aquele por quem procuramos desde a concepção?
Lábios
contra lábios, intercalando a respiração com palavras sussurradas
e dedos afoitos, percorrendo faces ardentes como se as pontas macias
possuíssem a capacidade de memorizar o que tocavam.
-Pode
o amor tornar tudo o mais tão insignificante, distante do ser de
nossa afeição, que pouco nos importe a humanidade que se localize a
um metro ou mil se ela não atender pelo teu nome?
Lábios
deslizando por garganta, colo e ombros como se pela pele, toda a
essência da vida pudesse roubar.
-Fiquemos
juntos então, que nos
meus braços eu acolha a
própria morte e que com os meus dedos eu lhe afague a cabeça. Vem
até mim, meu amor, e que para mim tu sejas a morte do que eu fui e
a vida o que serei.
Doce
é a dor dos amantes que morrem juntos, pois a eles é dada a
oportunidade de exalar o último suspiro, um com os lábios colados
aos do outro.
Profundo
é o desespero dos amantes que encontram-se separados na morte.
Grande
é a raiva dos amantes quando percebem a traição do amor e a paz
jamais eles alcançarão.
Com
uma risada de loucura e os braços abertos como se asas eles fossem,
o último dos homens de mim zombou, e de todos o mais belo ele era e
também, maior a sua dor.
-
“ Regressa ao temporal, regressa a tua noite, e deixa-me comigo...”
E com
semelhantes palavras, uma mesura ele fez, colocando-se de lado como
se de cena ele saísse.
“A
minha alma, que chora,
Não
sai mais, nunca, nunca mais!”
O
tique-taque do relógio não mais parecia irritá-lo. Nada mais
parecia ter essa capacidade. Escutava o som, agarrando-se a ele com o
pouco de força que lhe restava e a única coisa que sentia, além da
tristeza, era o vento que entrava pela janela aberta agitando as
cortinas.
Com
os olhos abertos, não via a sala em que estava e sim seu passado. O
dia do casamento...vira a saída da noiva permanecendo afastado,
oculto pelo tronco largo de uma das árvores...recordava a dor, o
sofrimento. Nunca ela lhe parecera tão bela e trágica. Havia se
afastado no momento em que os lábios do noivo tocaram as faces
dela...percebera os olhos tristonhos olhando na direção oposta, tão
distante, tão sem paixão.
Na
noite anterior fora ele
a beijá-la. Tomara o rosto pálido e macio nas mãos, mergulhando os
olhos nos dela e depois apreciando os lábios entreabertos, com o
peito doendo de tanto amor, e, apesar do desejo, trouxera o rosto
dela para perto lentamente, roçando os lábios em sua testa, como
convinha a um irmão.
Sabia
que jamais outro homem conseguiria amá-la como ele, e sabia que
jamais poderia tornar a amar alguém se não fosse ela.
Havia
caminhado por tanto tempo, durante toda noite, e mesmo assim ela não
saía de sua lembrança. Mesmo agora, quando tudo se acabara para
ele, seus últimos
pensamentos eram para ela.
O
relógio continuava tocando e o vento soprando...ele não via mais
nada...a não ser ela...sentia-lhe os dedos mornos fechando-lhe os
olho com carinho...ele não via mais nada, nem mesmo ela.
Permaneci
observando-os, belos, assustadores.
Uma só voz
falando por todos, sem que lábios se movessem. Uma voz com dez
timbres soando em minha mente e coração, cercando-me,
amando-me...eu podia sentir-lhes o amor...e a dor...
Dizia-me
a voz a sina dos corvos. Sofrimento e desespero; desilusão e paixão.
Perdidos estavam e assim ficariam.
Prometiam a
libertação, a confissão e a redenção.
Viva ou
morra mas deixe de sofrer, ou seja, como nós. Receba a oportunidade
da vingança ou a trégua da paz.
Sem dor,
sem amor...venha a nós, viva em nós.
"Não
pode haver justiça aonde
não
há verdade.
E
qual é a verdade?
Quem
souber que me diga, mas eu
não
vou acreditar.
Nada
é o que parece ser.
Por
baixo de luvas limpas há sempre
mãos
sujas e as minhas são as mais
sujas
de todas.”
-Aeon
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